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Sento-me, irrequieta, a escrever o prólogo de Zizek Vai ao Ginásio. Tento abandonar-me ao imenso prazer de ler um poemário comovedor, estimulante, que, às vezes, até faz com que sorria. Contudo, o prólogo não nascerá dessa vontade de expressar o que me move quando escrevo. Foi solicitado pelo autor, meu amigo, que talvez queira agradecer-me assim, com este caminhar de mãos dadas − o seu nome e o meu nome juntos para sempre −, qualquer atenção; sei lá, a amizade segue caminhos de cabras, íngremes e acidentados. Contudo, permaneço alerta. Se errar no tom, até é possível que se zangue (“olha, eu não disse tal”), se convocar os meus demónios na interpretação, irá sentir-se alheio (“se quiseres dizer isso, escreve o teu próprio livro, não venhas cá lixar o meu”), se me detiver nestes detalhes antecipando a sua receção serei melindrosa, se fizer generalizações vagas conseguirei “esse prólogo que apenas escreveste por compromisso”.
Nalgumas das leituras anotei nas margens: “Tiago Alves Costa continua o percurso do Mecanismo de emergência. Revisita com insistência a pesada carga da jornada laboral e, ainda pior, da ausência da tal jornada, as contradições do capitalismo, o ritmo circular do tempo para quem estiver a vender a própria força de trabalho ou, ainda pior, a não conseguir vendê-la. O dia da marmota que se repete, mais uma vez, marca o ritmo dos poemas, que transitam do político para o existencial, e evoca a angústia sem cair no místico. São, sobretudo, poemas do abandono”.
Imagino a cara do Tiago: “oi, Teresa, e agora és crítica literária? Só tinhas que escrever um prólogo. Apenas isso”. Teria razão. Ele próprio apenas se sentara para escrever poemas. Apenas isso.
Quem escreve poemas e quem escreve prólogos não pode perceber-se. São dois seres irreconciliáveis e isso dá nas vistas ao público. O primeiro é autónomo; o segundo trabalha por conta de outrem. Mora no espartilho que o autor dos poemas desenhou para si, tal qual o operário mora no convénio laboral que a moderna empresa desenhou para si. Não pode escapar do universo recriado, das convenções ditadas. Não deve.
Anoto nas margens: “É o seu tom irónico e o jogo deliberado com a fantasia que tornam a obra do Tiago Alves Costa numa referência tão insólita como os empregados de empresas de mapas que nunca viajaram e que apenas conhecem a geografia do seu corpo e do seu inocente curriculum. Esse humor que goza de si, dos interrogantes, das dúvidas, das roldas que percorremos como cobaias evoca em mim o Afonso Cruz de Vamos comprar um poetaonde o poeta é um luxo, um adorno adquirido como animal de estimação”. Detenho-me abruptamente. Será apropriado associar no prólogo os textos do meu autor com os daqueloutro autor? Vou ao Google com a intenção de comprovar se estes escritores, ambos portugueses, aparecem juntos nalguma imagem. Encontrar uma selfie deles num sarau ajudaria. Hoje nenhuma hipótese consegue abrir-se se não for com pé de foto incluído. Pesquisa impossível: não aparece uma mínima amostra com que documentar o meu atrevimento. Nada.
Ainda bem que nunca acreditei em prólogos, na capacidade de colocar um preliminar à palavra cuidadosamente selecionada e escrita. Porque Tiago Alves Costa, com a sua perícia de ourives, traz para mim ressonâncias de autorias diversas: a mexicana Verónica Gerber Bicecci, a sueca Lena Andersson. Será ainda mais complicado conseguir provas fotográficas se me ponho assim tão evocadora. Estarei a insinuar que a sua, a do Tiago, é uma escrita feminina?
Anoto nas margens: “Ler Zizek Vai ao Ginásio é mergulhar num universo alternativo onde o peso dos labores dos dias é amolecido pela possibilidade de os poemas se apresentarem por si próprios a prémios literários e as palavras brincarem com quem as persegue. Esse universo nem por ser poético, medido na palavra e na mesura, deixa de ser narrativo. Muitas personagens são conhecidas para quem leu o Mecanismo de Emergência. Os terrores que nos visitam na insónia também. E as ausências: volta o cordão umbilical rompido, a memória do menino, a aquisição do tacto, aquele sentido imprescindível para os mamíferos”.
Após tantas hesitações, acabo de entender o sentido deste prólogo. A minha missão é escrever, em nome do Tiago, uma convocatória coletiva até darmos com o endereço eletrónico do filósofo: cherchez l’homme. Se alguém o tiver na sua posse, ou se alguém puder conseguir os seus contatos, por favor, enviem. É assunto urgente para o Tiago, ou para mim, ou para mim e para o Tiago em simultâneo, contactar com Zizek. O que farei depois é incerto. Porém, enviem-me esse email, por favor. É possível que acabe por ter um caso com o pensador e o prólogo sirva para atividades estimulantes no logo, quer dizer, no capítulo principal da aventura que virá depois do pró. É possível que seja o Tiago quem se delicie com esse trato íntimo. Ou que qualquer de nós se atrapalhe numa correspondência filosófica de altura. Prólogo apenas significa antes da palavra e, justamente, antes de encapsular as ideias em palavras, nesse preciso instante, ainda tudo é possível, até nos perdermos num qualquer sábado sem inveja, deixar a vida e montar uma loja de segunda mão ou até chegar a um parque industrial num domingo à tarde, com as máquinas paradas, os armazéns fechados, os computadores obedientes e ninguém para ser subjugado. O poeta já avisou:
“O poeta avisou:
Antes de me conhecerem, devem primeiro conhecer as minhas palavras.
Então as palavras entraram na sala e o poeta ficou do lado de fora à espera.
No seu interior as palavras começaram a desconstruir o que havia à sua volta.
Aos saltos, sobre as mesas, gritando, despindo-se e com esgares de loucura
executando jogos do empurra com os presentes.
Tiveram de chamar dois críticos especializados na área que
não conseguiram entender as palavras, debelar o problema?
Chamaram então a polícia.
Algemadas as palavras saíram da sala sobre o olhar cúmplice do poeta
que ali estava sentado na sua melancólica calma, proferindo:
Se ainda desejarem, posso agora falar um pouco de mim”
Porque as palavras contêm tudo: a denuncia e a citação, o relato e as suas feridas. E só após terem servido como terapia, como confissão, como insulto e como mordaça do pensamento, as palavras poderão contar quem somos. Só nesse momento Zizek poderá ir para o ginásio tranquilo, a queimar calorias. E categorias. Só nesse momento eu poderei libertar-me de explicar o que não saberia já dizer sem recitar o que Tiago Costa escreveu e deixarei de ser prologuista para arranjar um emprego como tem de ser. Só nesse momento, quem lê poderá ir para o livro e largar este prefácio que não serve. Porque não acreditamos nos prólogos.
E, talvez, tudo fosse mais rápido se conseguíssemos o telefone. O de Zizek.
Teresa Moure
(Romancista e doutora em linguística pela universidade de Santiago de Compostela)
*Fragmento do prefácio do livro Žižek vai ao ginásio