Hoje as nossas sociedades vivem cada vez mais organizadas em torno do dinheiro. Mas não é apenas o ganhar dinheiro ou, em certa medida, ter objectivos de carreira que guiam as nossas vidas, é o prestígio, o status e a identidade social que caracterizam esta nova espécie de capitalista mental em que nos transformamos. Mesmo quando as grandes corporações afirmam que “as pessoas estão em primeiro lugar”, realmente só se estão a referir às habilidades e experiências dos seus funcionários como “capital humano”. Tudo aquilo que fazemos no nosso dia-a-dia tem, invariavelmente, um valor monetário associado a ele. Essa tendência é parte da actual sociedade do “rendimento” na qual habitamos e que pode ser vista muito claramente na comunicação digital, assumindo esse lado exacerbado nas redes sociais, reconfigurando o nosso papel de cidadãos para consumidores paliativos.
A filosofia de Byung-Chul Han (Seoul, 1959), dialoga com o pensamento de Nietzsche, Walter Benjamin, Martin Heidegger, Michel Foucault, Agamben e outros pensadores para sondar as enfermidades produzidas pelos dispositivos de poder das sociedades neoliberais do mundo contemporâneo e, na qual, se insere a sociedade do rendimento e da auto-exploração; ao contrário da “sociedade disciplinar” de Foucault, onde as pessoas sabem que a sua liberdade é limitada, no contexto de uma sociedade de controle – e muito falsamente – elas acreditam que são livres. É uma mudança de paradigma que faz com que se discipline o corpo para, de uma forma sedutora, poder controlar a mente. Uma das consequências mais visíveis prende-se com o facto das pessoas se sujeitarem cada vez mais a auto-exploração agressiva levando no limite ao esgotamento mental, o colapso físico, e consequentemente o surgimento de patologias tais como o síndrome de “burnout”. Tradicionalmente, “exploração” implica que alguém seja explorado por outra pessoa, Han afirma que realmente fazemos isso para o nosso Eu. “A crise que estamos actualmente a experimentar vem da nossa cegueira e estupefacção”. Para Han o que faz adoecer não é a retirada nem a proibição, mas sim o excesso de comunicação e de consumo; a “crise”, segundo o filósofo, cinge-se a dois aspectos essenciais: por um lado a crise democrática causada pela superficialidade da comunicação digital, redes sociais e a constante hipercomunicação, e por outro, as consequências que a primeira traz subjacente e que prejudica o pensamento crítico, o respeito e a confiança perante o “outro”.
Han alega que o poder-psicopolítico neoliberal de hoje parece ser invisível e imperceptível a menos que prestemos muita atenção. Mas será ainda possível vermos aquilo que já não conseguimos ver? Este é o problema que hoje nos debatemos: raramente prestamos atenção porque o que funciona como um poder invisível ou imperceptível é também o que nos impede de prestar atenção. Portanto, uma crítica tradicional do capitalismo não é suficiente. O ponto realmente vital e que devemos tentar entender é que as nossas vidas diárias e as nossas ideias sobre a liberdade tornaram-se nada mais além das engrenagens de toda a maquinaria do capitalismo.
“Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, abre o caminho para a sociedade do escândalo.”
Uma das razões, desde logo, é que a cultura digital é baseada na contagem. “Em contraste, história significa recontar.” No Twitter ou Facebook, contamos seguidores, gostos, retweets ou amigos, enquanto a verdadeira amizade, diz Han, “é uma conta, uma narrativa”. A cultura digital também está ligada ao “mantra da transparência” que podemos encontrar em toda a política mundial e que apenas diminui a confiança ao monitorizar e controlar cada clique que fazemos online.”A transparência é regida pela presença e pelo tempo presente”, afirma o filósofo. No entanto, para pensar, precisamos de distância – física e mental – que é o que constitui a esfera pública. É com a distância que aprendemos a respeitar, reflectir e analisar. “Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, abre o caminho para a sociedade do escândalo.” Ainda assim, alguns podem perguntar, se não poderíamos usar esses mesmos meios de comunicação – YouTube, Twitter, Facebook, etc. – para activar uma consciência crítica, trazendo os académicos para fora da torre de marfim e para uma sociedade mais ampla e consciente?
Dois conceitos orientadores funcionam como ferramentas analíticas para Han em todos os seus livros: liberdade e poder. Liberdade, de acordo com o autor, é tanto um problema quanto uma possibilidade. Vivemos numa época em que a própria liberdade dá lugar a coacções. A liberdade do poder fazer engendra até mais coacções do que o dever disciplinar. Para Han o dever tem um limite. O poder fazer, pelo contrário, não tem limite algum. É por isso que a coacção que provém do poder fazer torna-se limitada. Para Han encontramo-nos, portanto, numa situação paradoxal. A verdadeira liberdade é socialmente ancorada, tal como expõe no seu ensaio Psicopolítica: “Liberdade é sinonimo de comunidade que tem sucesso.”
“No Enxame” Han inicia com um lamento pelo “pathos da distância”, que forma a base para o respeito. É um olhar de novo. Trata-se de uma atitude que hoje é substituída por olhar sem distância, o olhar típico do espectáculo. O verbo latino spectare, que está na origem da palavra espectáculo, significa uma extensão voyeurista do olhar, uma atitude desprovida de consideração distanciada, de respeito (respectare). No contacto respeitoso com os outros evitamos o olhar curioso. A concessão da privacidade do outro é a base da sociedade civil. Citando Roland Barthes “a vida privada nada mais é do que a zona do espaço, do tempo, onde não sou uma imagem, um objeto”, Han argumenta que essa mesma vida está a desmoronar-se com a virtualização do Eu. Os actos individuais de indignação virtual que compõem as “shitstorms” – o comentário insistente na caixa de comentários, o desagradável tweet ou o postfame no Facebook – não são um prelúdio para o engajamento, mas sim uma ocasião de “descarga afectiva imediata” num ambiente que alimenta a comunicação simétrica. “Isso significa, em essência, que a condenação online responde menos aos critérios dialógicos da persuasão do que ao prazer básico de lidar com um tiro barato – em muitos casos, sob o anonimato – sem se preocupar se o alvo é um estranho, o autor de celebridades ou o presidente dos Estados Unidos”. Para o filósofo, a indignação é um fim em si mesmo e os seus alvos são inevitavelmente granulares, de modo que as relações de poder que estruturam as queixas individuais no seu núcleo persistem inalteradas durante a tempestade.
Vozes críticas consideram que Han opera com um ideal romântico sobre a autenticidade e a verdade e que de alguma forma as desvantagens do neoliberalismo – e especialmente da Internet – por ele discutidas já foram exploradas antes. No entanto, considero que o pensamento de Han concentra-se em algo diferente. Ele levanta questões não só sobre a condição da nossa sociedade actual, como também afirma que o problema real é não levantarmos tais questões. Com a revolução digital caminhamos para uma época da psicopolítica digital, onde o poder intervém nos processos psicológicos inconscientes de tal forma que rapidamente nos estamos a transformar num tipo de cidadãos facilmente maleáveis que os ditadores totalitários sonham.
Publicado originalmente em Palavra Comum.