Corremos, há já algum tempo, sem movermo-nos do sítio. Corremos para segurar o salário mas também o reconhecimento, corremos pelo simples facto de correr. Quando se corre cria-se um elo e se por acaso paramos, o elo rompe-se. Correr é traçar uma linha. Esta linha não existe. Só existe quando corremos.
Sidi Moahmed Barkat
Com a viragem digital em curso, abandonamos definitivamente a terra, a ordem terrestre.
Byung-Chul Han
O nosso tempo, este que nos tocou viver, é provavelmente um dos mais trágicos que a humanidade alguma vez viu. O trágico é uma categoria incontornável. Repito o trágico e acrescento a farsa, o riso, rirmo-nos (ri-te), eu rio-me, perante o admirável espectáculo. A nossa época traz sob as suas insondáveis costas o peso de todos os outros tempos vividos: guerras, desastres ecológicos, regimes totalitários, atentados terroristas, o medo, a mentira, a palavra Democracia, essa estátua de porcelana que começou a encher de exotismo as salas dos museus de todo o mundo. O que ficou de uma casa que tendia para a perfeição de um palácio? Perderam-se as paisagens, aniquilaram-se os bosques, os lugares da infância, passamos a consumir desenfreadamente, passamos a sofrer cada vez mais com o vazio de um época materialista, corremos, hipercomunicamos, desinstala-te – digo.
O facto de recorrermos várias vezes durante o dia ao noticiário não será já um sinal de angústia?
Repara bem: não contemplas, nem sequer escutas. Corres. Eu e tu. Para onde? Faz um exercício: pára. Ou experimenta correr para trás. O que vês?
A poesia é uma forma intemporal de existência, ela é dos valores mais profundos da existência. Não corresponde a uma determinada época ou uma geração. Ela é do mundo, da vida. É minha. É tua. Usa-a – direi. Em todas as épocas os césares pretenderam aniquilá-la, ou astutamente, utilizá-la, ao ponto de usurpar-lhe os méritos. Dir-se-á que ela, a poesia, sempre se elevou contra os que quiserem instaurar a ignorância como estado. Ela foi sempre uma linha de fuga em relação à vida que nos foi imposta, uma luz que sempre revigorou a realidade, seduzindo-nos e recriando o mundo, um mundo tacitamente comum, vulgar, induzido à inércia da lógica do dia-a-dia, ao jogo sórdido do dinheiro e da avareza de espírito.
Há 30 anos atrás Maria Gabriela Llansol, uma de vozes mais singulares da literatura portuguesa, escrevia o seguinte:
Escusam de me vir dizer que o mundo não existe, porque isso é o que eu sei, desde o princípio. Porque os que falam confundem, deliberadamente ou não, realidade e existência. Há muito real que não consegue existir, e há muitíssima existência que não tem (nem nunca teve) realidade alguma. A maior parte do que existe é miséria alucinada”1.
Arthur Rimbaud no séc. XIX pressagiava a decadência da Polis:
Sou um efêmero e não excessivamente descontente cidadão duma metrópole que julgam moderna porque foi evitada toda a estereotipia no imobiliário e na fachada das casas, como no plano geral da cidade. Aqui não ficou rasto de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua enfim reduzidas à sua expressão mais simples!2.
O que terá mudado em nós, em ti, no mundo? Vivemos na urgência de um tempo que finda. Filhos de um futuro demasiado velho não somos mais que meras ficções tranquilizadoras do frenético ritmo do avanço. A humanidade sempre puxou muito de uma perna- dizes.
Olha-te: a vida acaba de chamar: viste?
Este texto foi escrito para o 1º número da Revista [sem] Equívocos.
Referências bibliográficas:
1 Maria Gabriela Llansol, Na Casa de Julho e Agosto
2 Jean- Arthur Rimbaud, Iluminações
fotografia de Maurizio Catellan, A perfect Day