SOU PRESIDENTE DA REPÚBLICA INDEPENDENTE DE MIM MESMO (diálogo narcísico para um tempo sensível)

– Mas quem é você afinal?
– Sou o Presidente da República Independente de Mim Mesmo.
– Isso deve dar muito trabalho…
– O trabalho é o que eu mereço. Mais complicado é o modo de vida, este estado de coisa nenhuma que me submeto. Mais atroz é esta farsa que com todas as minhas forças tento ocultar da opinião pública, a mentira que no fundo sou. Complicado, sim, desconhecer em absoluto que outro sistema possa encobrir, que calúnias desejam de mim, que conspirações querem que eu continue a simular. Já sobrevivi a várias ditaduras, já idealizei golpes de estado, já imaginei tantas revoluções!.. Para quê? Tudo em vão. Toda esta minha utopia só serviu para abalar a minha estrutura sentimental, descontrolar o meu desejo de corpo, a minha fome. Eu que já amei, que governei, que eduquei, que já mantive com fundos de um trabalho mal pago outros estados, que os nomes não posso divulgar por incorrer num crime de nações totalitárias. Eu, que também já instaurei por várias vezes o silêncio que se despoletou após um amor tonto qualquer, um amor que foi rapidamente censurado por uma súbita mudança nas condições climatéricas. Veja bem: até por TURISMO eu deixei de ser. Por um fim-de-semana quiserem vir, por uma noite quiseram que eu fosse algo de provisório, de um futuro novo anunciaram a minha glória, ah minha glória…mas o que quiseram foi denegrir a minha falta de vontade, os meus atrasos para o comboio, chamar a polícia e acusarem-me a mim de amar um sem-abrigo, de um estacionamento ao contrário, de uma tradução falsa para português!

 

Eu: o Presidente da República Independente de Mim Mesmo

 

sou o presidente

 

Sim, fechei-me aos outros depois de uma síncope momentânea do Inverno. Meu pai e minha mãe fingiram a minha alegada falta de colaboração com a sagrada família, ai a família… No fundo cansei-me de cansar-me, de ser cansaço. E agora com as minhas sujas mãos caminho numa rua calma de Domingo, cumprimento os passantes como se vivo fosse Bom dia, a senhora como vai hoje? escondo a vil guerra, o conflito que decorre no interior de mim mesmo, essa fúria mansa que vai corroendo toda a minha organização e que a ciência parece ser incapaz de debelar.

Sou é certo o único habitante da minha República. Com várias campanhas de marketing tento habitar-me, a novas fronteiras tento abrir-me, tento obviamente falar idiomas impossíveis de articular; no entanto reconheço que todo este estado de coisa nenhuma parece ter afectado para sempre a minha independência.

De uma coisa estou certo: até que alguém prove o contrário, continuarei a ser o Presidente da República Independente de Mim Mesmo e não permitirei que me destituam deste cargo a troco de nada.

O outro, depois de uma longa vénia, deixou-lhe uma moedinha.

 

*

Diálogo escrito para a 4ª edição da Revista [sem] Equívocos.

Créditos da fotografia: James Turrell

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