Fosse como eu próprio vou
de frente para esta realidade percebida como imperfeita
vivendo este estado de coisíssima nenhuma de isto ainda poder ser
como se fosse, realmente… um parque industrial num domingo à tarde
com as máquinas paradas, os armazéns fechados
os computadores obedientes
os lugares reservados!
e ninguém para estacionar
ninguém para ser amado contratado subjugado
[que solidão de pasmo
Fosse como eu próprio vou
imaginando os diretores de lânguidos corações mansos como totalitários
os chefes de secção com o banho tomado e como se nota
os comerciais hirsutos especulando nesse sono
que não vende não vence não come?
Parada a empresa de logística
a empresa de comunicação em mute À tout le monde não insistam por favor
a empresa de recursos humanos sem fortuna química pessoal
os transportistas conspirando estradas sem noite
os especialistas de máquina treinando teimando traindo!
e os vigilantes como hastes invisíveis da ânsia coitados
sonhando subir na carreira de todos os crimes
de operadores a contadores a sentados
de contabilistas a secretários a émulos
do despedimento sem corpo calmo!
Ah, e a pausa para o almoço… tão silenciosa
tão melancólica como numa paisagem
de uma só fotografia
e a puta famosa tão mãe
[que solidão de pasmo
Mas se eu fosse e não pensasse
se eu por acaso fosse bicho ao sol
em cada pranto a sonhar com um poema a sério
se eu por caso não pensasse aqui todos os dias
como um empregado-escravo-das-horas
para dizer olá à senhora da limpeza que sorri
como se fossemos os únicos vivos dentro desta morte
que ignora as faces dos homens calmos que já deviam
ter ido para a cama há muito
[que solidão de pasmo
Ah, se eu por acaso fosse e não passasse
este poema a limpo e voltasse para a floresta humana
de todos os princípios onde o mundo sim é algo digno
de ser escrito e inscrito nesta erosão física de todas as rotinas
neste ritmo ansioso do cansaço em cansaço de abraço em abraço
imaginando uma fórmula para aumentar a possibilidade de isto ainda ser
essa coisa que os creditados nos registos do património
avaliam para a causa humanista de todas as causas improváveis
para as quantidades de gente com gente dentro
ah, os horrores económicos
mas homem, é preciso devorar o mundo!
Se eu por acaso fosse
mas não, vou como sou
um parque industrial num domingo à tarde
[que solidão de pasmo
Poema inédito publicado originalmente na Gazeta de Poesia Inédita.