Certas obras supõem para mim um salto mortal sem rede. Já vivi vários: Whitman, Herberto, Clarice. Neste sepulcro em que hoje nos movemos, poucos são aqueles capazes de nos assombrar no escuro da leitura e paredes meias atingir o belo. E todo o nosso transe é justamente a experiência da ruína desse muro e da abertura de uma paisagem. Luís Filipe Sarmento é mestre nesse desígnio. É capaz de nos juntar a todos na nossa dor, no nosso sonho, no nosso pessoalíssimo modo de encarnar a morte, e soprar-nos ao ouvido com a mesma faúlha, a mesma réstia de fogo. Os seus poemas erigem-se como um monumento que ilumina o silêncio. Será verdade que na morte haverá um alívio na música? No meu mundo de paralelismos imaginários vejo-o ao lado de Carlos Edmundo de Ory. Coisas do meu inconsciente. Mas é dessa inesgotável fonte onde o poeta exerce o seu transe, justamente sobre este fio de contrapesos, que ele consegue extrair o mais precioso metal: louco alquimista que lavra no verso a tensão dos nossos medos e dos nossos desejos mais secretos e profundos, imagens talhadas com a precisão de quem conhece o inferno humano e a divina perfeição da matéria e as integra perfeitamente na realidade, ou, na verdade, do poema. Este é um artefacto que está talhado para nos seduzir. É uma voragem, um zodíaco de feras. Um lugar que gesta, recebe e incarna o acontecimento. Porque fora do poema tudo o demais resulta desnecessário. KNK trata-se, pois, de um acto divino e diabólico: roubar a palavra a deus e retirar a razão ao diabo. Poucos o conseguem como o Luís. Jogar com os elementos mais genuínos, com as cores primárias e sobre o espaço da mais radical saudade: o mistério da vida. Conservar com isso todas as funções que foram encomendadas desde que o poema nasceu: música, conhecimento, jogo, catarse, comunicação, álgebra superior das metáforas, fingimento das coisas úteis e inúteis, o segredo.
“Nunca se aprendeu uma verdadeira obra de arte senão expondo-a indubitavelmente como segredo” ( Walter Benjamin)
E nós pertencemos a este tecido, somos esse tecido cintilante. Sob esses vagalhões de estrelas com que, na ausência de Deus, respondemos ao nada e à dor. Quanto mais Deus nos vira as costas, mais o clarão se atiça lá atrás. Aqui: o poema. O olhar que descobre as relações ocultas que há entre as coisas, vincula e é fundador de duração. E perante todo este aparato verbal pensamos na nossa vida pequena a que facilmente sucumbimos com voluntarioso ímpeto dos méritos. Para quê este mundo infindável de tragédias, sobressaltos, honras, o sonho que alimentamos para que possamos tapar os ouvidos ao roer subterrâneo da vida real, a barbárie? Luís Filipe Sarmento não faz cedências paliativas. Sabe que esta viagem conduz-nos velozmente ao coração alucinado de um bosque onde dançamos felizes sobre a fome e sede. E por isso traça sobre nós uma senda própria tomando para si todos os elementos. Como sábio que é (basta ouvi-lo por uns momentos) vai beber de diferentes escolas e tradições e assim submeter-se a uma experiência que procura superar os próprios confins da linguagem, um pulso constante, uma tensão de opostos onde se fundem sobre o verso o corpo e espírito, a ciência e crença, filosofia e alucinação. E é assim que ele cria o mistério na matéria, tenciona os planetas no vazio, doma o azar, instaura um novo e provisório caos e reinventa um novo mundo. E hoje em dia são muito poucos aqueles capazes desta proeza.
