Enquanto tento obedecer ao persistente som de uma tecnologia que analisa o meu ciclo do sono, duas tempestades formam-se no pacifico deixando mais de 10.000 pessoas desalojadas. Uma mulher, depois de ser despedida, sobe ao topo do Mont Ventoux só com uma perna. Num país longínquo, um político imagina um muro alto que fere e segrega … Ainda assim, eu movo a cabeça muito lentamente para o lado esquerdo, estiro o tronco em amplitude, abro os olhos, tento confirmar se essa oblíqua fresta de luz, que surge da ínfima janela do meu quarto, é mesmo o deus sol e não mais um engano dos homens da meteorologia que ontem anunciavam céu limpo para todo o continente. Arrasto o meu braço direito, tateio um dos flancos da cama – feita ontem com lençóis lavados – corroboro se há alguém do meu lado, e, com um dos pés, um exercício que executo desde criança, meço a temperatura exterior.
Todavia, a tecnologia lança-me um novo aviso. E, enquanto isso acontece, uma nebulosa forma-se numa parte obscura do universo, das duas tempestades que se deram no pacifico uma mulher pensou que talvez fosse possível montar um negócio de tempestades; e eu, vou recuar ligeiramente o tronco como se desse a mim mesmo uma segunda oportunidade. Vou acreditar que ainda vale a pena ter esperança, levantar-me da cama com os lençóis que foram ontem lavados, e, com um impulso, esquecer as funestas notícias de última hora, o número estranho do euromilhões, os constantes avisos de “por aí não!”. À terceira advertência, vou vestir-me rapidamente, tomar esse pequeno-almoço sem fome, vou sair de casa sem saber por que saio, avançar nervosamente para esse trabalho que detesto, e, no terceiro lanço de escadas, vou tropeçar com violência. Entrementes, o meu pesado corpo se encaminha na direcção do chão, irei ter tempo para pensar nas tempestades que se formam sem aviso, em 10.000 desalojados, na coragem das mulheres despedidas que sobem montanhas impossíveis, no imaginário incalculável das déspotas cabecinhas dos políticos e que não, nunca foi de uma licenciatura que afinal precisei, nem de chegar cedo ao trabalho que detesto, nem de uma equipa especializada que me informasse de chuva para os próximos trinta dias, ou até de uma tecnologia que medisse a temperatura do meu sono, mas sim, das duas mãos para amparar-me a queda.
E caí, caí tão violentamente que levantei-me, por fim, da cama.
Texto publicado na edição número 20 da revista Sem Equívocos.