Procura um sítio elevado, onde te possam ouvir bem, depois perscruta-o desesperadamente dentro de ti. Logo a seguir, uma pessoa a quem o possas dedicar. Sim, agora abre bem essa boca. Espera: o MEDO. Embora te possa parecer fácil encontrá-lo, só depois desse exercício inicial o grito poderá subir em ti, hiante e pletórico. Abre bem a boca. Sim, procura esses ligeiros temores da infância, as vagas sensações dessa noite sonâmbula, a realidade que te é imposta, de forma reiterada, ou as falsas notícias de última hora Última hora! A última hora passou demasiado rápido. Sim, abre bem essa boca. Deixa que o medo emerja tão alto e nervoso como o mundo, que esse teu inimigo imaginário suba pelo diafragma, avance sob o nó apertado da garganta e chegue à tua boca esfomeada. Grita! Espera, isso não é um grito. Não. Um grito é projectado do interior de um animal faminto, um animal que se erige de uma fenda téctónica, um animal que fareja a liberdade, um grito. Grita! Talvez não estejas com medo? Estás, sim. Mas o teu engano é tão insuportável, a farsa que te rodeia é tão incomensurável, a claridade que cega e te estiola… que nem sabes o quanto precisas de gritar. Lembra-te: uma coisa é gritares para dentro e outra é vires para a tua rua gritar, uma coisa é o medo que tens do mundo e outra é o medo que têm que tu deixes de ter medo. Sim, procura um sítio elevado e uma pessoa a quem o dedicar. E lembra-te que ainda ontem subiram às tuas inocentes costas, procuraram o ponto mais alto da tua dor e apertaram, apertaram com tanta força essa tua fragilidade, essa tua memória implícita, que te subtraíram a capacidade de ver ao longe, o teu amor pelas coisas, a tua dignidade, a tua urgência de justiça! Recordas-te? Sim, abre bem a boca e grita. Grita!… Sim! Isso é um grito. Sim, Grita! (silêncio) Vai dedicado a mim?

(silêncio)

Foto de capa de James Turrell