Escrever o cansaço incansável: Žižek Vai ao Ginásio | por Carla Carbatti

Como escrever quando as palavras, o pensamento, o silêncio, as mãos estão cansadas? O que escrever com as palavras, o pensamento, o silêncio e as mãos cansadas?

Cansaço, eis um conceito, ou melhor, um percepto (o pensar mediante percepções e sensações próprio das artes, segundo Deleuze e Guattari) incontornável para acompanhar ao Žižek Vai ao Ginásio de Tiago Alves Costa. Não só o vocábulo e sinônimos aparecem inúmeras vezes, quanto há várias imagens que nos remetem a ele. Mas antes de seguir por aí, devo lhes indicar meu procedimento de leitura. Aprendi, pesquisando Clarice Lispector, que a palavra pode ser tecida (ou capturada) no interior de um dispositivo (dispositivo a modo foucaultiano, como aparelho e aparato de poder), chamado Literatura. Desde aí podemos classificar um livro, chamá-lo de romance, poemário, crônica, obra de teatro, etc.; podemos situá-lo em uma escola literária; ou mesmo, seguindo a trilha de sua fortuna crítica, afirmar sua importância ou não para o campo literário de seu país e fora dele; enfim, outorgar-lhe não só um significado, como um valor (moral e econômico).

Mas a palavra, de toda maneira – e é aí onde Clarice fala e pede para ser escutada – tem igualmente a sua geografia afetiva e sensitiva; ou seja, a palavra implica as forças que abalam o corpo-linguagem e perseveram como o inominável (sem significação). O trabalho da leitora, da pesquisadora, da crítica, antes que revelar o Significado do texto, é mapear essas forças, ressoar o inominável: assumir o lugar da situação original, lavar, do pensamento na nascente (que não é a essência, o fundamento, senão a impossibilidade de significar o sussurro desses abalos sígnicos, ou, como quer Clarice, da convulsão da linguagem); é, ainda, como diria Blanchot, velar pelo sentido ausente. Ler, assim, é estar à escuta, de olhos fechados, tatear. Ler-com (não ler sobre). Tatear o e no limite, a frequência, a resistência da palavra que se apresenta como corpo-vibrante, translúcido, opaco, do qual nos resta apenas dizer a rasgadura do roce, a ferida do con-tato.

Bom, se eu arrisco a dizer que o cansaço é o percepto predominante do livro, sendo coerente com o procedimento que proponho (: processo de escuta tátil), devo fazer um pouco de silêncio, abrir os poros, dar ao Žižek Vai ao Ginásio a ternura da demora. Passear com esse cansaço, ir, voltar, respirar, acariciar; entender com os dedos como ele funciona para sugerir uma pragmática dos afetos e sensações, bem como criar, nesse exercício, nessa dinâmica, linhas de fuga para pensarmos juntxs.

Sei, por fonte privilegiada, o próprio autor, que há no seu livro um diálogo com o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han; quer dizer, há uma linha-de-força-Han que atravessa a produção do seu próprio cansaço. Han, se entendi bem, no seu livro A sociedade do cansaço, nos fala de dois tipos de cansaço:

– um cansaço ruim, que ele chama de cansaço a sós, cansaço sem mundo; onde o sujeito está assujeitado não mais aos dispositivos disciplinários externos: penitenciárias, hospitais, escolas, etc. (como alerta Foucault), se não a um dispositivo disciplinário interno: ele mesmo. A esse sujeito cansado de se autoexplorar, que sofre de excesso de positividade (seja por estar sempre em atividade, seja porque o Outro, o mundo não está presente), Han o chamou de sujeito de rendimento. É o que denuncia a voz do poema 1000 mapas para fazer perder?

Meu senhor, neste preciso momento meio mundo tem emprego
Outro meio mundo busca um meio para não chegar tarde ao trabalho que ama detesta
Enquanto isso eu fui ali e já vim sem que o mundo me visse

Ou desse empregado de uma empresa de Mapas, do poema Os americanos, sem experiência alguma em mundo, que tem como tarefa eliminar a distância de tudo ser longe de mais e nada mais! e facilitar assim a aceleração do mundo

E justo nessa aceleração do mundo, perdemos o mundo.

– Há, por sua vez, um cansaço bom: que seria aquele que nos tornaria acessíveis, suscetíveis de tocar-e-sermos-tocadas. Quase diria, num agenciamento Han-Alves, que esse cansaço inaugura o tempo da vagabundagem e vagarosidade, do perder e do perder-se. Dilata os mapas, as geografias e no trajeto tudo é mundo e o mundo está por fazer no pulso de um tempo não pulsado, Sem idade (como sinala Tiago na bela homenagem que faz às poetas galegas) onde caminhamos como aprendizes na primeira hora do espanto; onde nos lançamos a uma longa viagem de barco sem mar, retornamos a um país em que uma criança nos receberá num idioma ignoto, à certeza de um país sem corpo que nos habita porque habitamos o mundo; ou como se escuta no poema que dá título ao livro: tenho mundo! / Medo? Sim, respondo, porque medo também é um dos nomes da nossa fragilidade, do nosso corpo vulnerável que se abre ao desconhecido.

Sem embargo, o que proponho é que o percepto de cansaço de Tiago não se limita a trafegar ou oscilar entre o cansaço ruim e cansaço bom de Han. Esses dois cansaços, como disse antes, são linhas de forças que se emaranham na criação do seu próprio cansaço; que, desde minha perspectiva, ganha corpo, se expressa como tensão.

Se por um lado as personagens (ou vozes poéticas) estão sempre agindo, empreendendo, por outro lado elas não realizam nada, estão em uma espécie de atividade inativa, de produção improdutiva, de im-potência. De onde a patente invenção de unidades sintáticas paradoxais do tipo:

Pessoa-estátua, poeta-estátua, poeta-morto, morto-vivo, vida-dinheiro, viajante-parado, correr parado, senhor-menino, homens-salmos, homem-máquina, dinheiro-Socrátes-Platão, abraço-mecânico, abraço-digital

Assim como de imagens como:

Parque industrial num domingo à tarde; vendedor de mapas sem experiência em mundos; uma voz desconhecida que afirma que isso vai bem enquanto todas as vozes afirmam que vai mal; escritor que cogita a possibilidade de deixar a escrita; um livro que não diz nada e pede para ser lido do zero, voltar à primeira página; um atleta inerte; alguém que vai perdendo a vida enquanto reitera que ela lhe pertence; um carro que ao invés de dar passagem, bloqueia; um esquecido ou uma autobiografia como sinônimos; 30 pares de sapatos para um morto descalço; escritor que é escritor porque não escreve; poema sem poeta;

Há também uma espécie de exploração do nicho de mercado do cansaço que produz personagens insólitos: críticos de sonhos, especialista em preguiça, negociante de lágrimas, carpinteiro de perspectivas existenciais; que desafiam os dispositivos de rentabilidade, não necessariamente atacando-os ou criticando, nem mesmo sabotando-os pela inércia ou inatividade, mas aumentando a voltagem, tensionando ainda mais, isto é, rivalizando com eles o terreno de criação de possíveis. E não se trata de uma alternativa, um isso ou aquilo, que, ao fim e ao cabo, opera dentro da lógica possível, se trata de indicar que o real não é tudo que há.

Nesse sentido, o cansaço-tensão do Tiago Alves é um cansaço incansável. Se por um lado (não exatamente um lado, mas em uma das correntes de forças da tensão) as personagens ou vozes poéticas nos passeiam por um território de solidão (um parque industrial num domingo à tarde), precariedade (empregados-escravos-das-horas), angustia (ritmo ansioso do cansaço em cansaço), categorias que o Capitalismo desdobra para fazer o mundo ilegível desde o ponto de vista comunitário; por outro lado ou na contracorrente, esses mesmos personagens, como se fossem os únicos vivos dentro dessa morte, nos faz retornar à floresta humana de todos os princípios, onde o mundo sim é algo digno de ser escrito e inscrito nesta erosão de todas as rotinas. E o poema se dá como dis-tensão por essas zonas erodidas, é um vaziamento ativo que permite espacializar uma força vital. Agora, não será esse vazio justamente a colocação em cena da ferida do sujeito que, lutando por abandonar seu “liberalismo existencial”, ou seja, uma relação com o mundo baseada na ideia de que cada um tem a sua própria vida, acaba por se deixar afetar, por se fazer sensível ao sofrimento, assumir a indeterminação e arriscar a dizer: não sei, não posso mais, tenho medo!? Ou ainda: ao invés de preencher o vazio, com uma série de empreendimentos empoderadores ou autosuficientes, reclamá-lo, evocar sua fragilidade como uma posição reticular ou rítmica no mundo? Assim, uma voz, no poema que dá nome ao livro, depois de declarado que não há mais nada a dizer, que somos pouco mais que nada, que tudo já foi visto e dito, como se fosse a voz de muitos, abre a boca de assombro e diz:

Duvido que o mundo avance mais do que eu

Mais do que eu avança o mundo

Para além da evolução, o que é que cada um de nós avançou?

Eu avancei tanto quanto o mundo

Eu avancei na amplitude da minha vontade

Eu avancei o que o mundo me deixou

Se o mundo não avança eu também não avanço

– Avançamos pouco então

Não é bem assim

Como é então?

Avancemos!

Mas quem avança?

Tu

Eu?

Não, vós

Nós?

Tenho mundo

Medo?

Ah, mundo tão grande o medo

Esse trecho é como uma dança desorientada, perturbada, de quem não sabe dançar, de quem está aprendendo dançando. Uma ginástica de corpos im-potentes. Há movimento, no entanto, os personagens não saem do lugar; o movimento acontece na tensão entre as vozes promovendo um campo de instabilidade, uma zona de intensidade. Algo muito similar, se passa no poema Vozes em coro, onde o coro repete a frase: isto está muito mau e uma voz desconhecida diz: isto está muito bom. ‘Isto está muito mau’ e ‘isto está muito bom’ são frequências que tornam audíveis os dois extremos, mas o que passa, o que acontece, é, literalmente, o que passa entre, a corrente, o fluxo que não pertence a nenhuma voz, portanto, não pode ler lido nem está escrito. Frequenta outros níveis de percepção. Eu diria, discordando do Tiago, se cabe tal coisa, que a voz desconhecida não é a que diz: isto está muito bom, a voz desconhecida é aquela suspensa na corrente (na tensão, ou ainda, no ritmo) do poema.

Erosões, instabilidade, suspensão são outras posições do cansaço. Talvez por aí passe uma outra linha de força do cansaço-tensão do Tiago Alves, que chamarei: linha de força-Blanchot-clariciana. Aí a coisa se complica um pouco. Para o crítico francês, o cansaço promove uma interrupção (que não é a da pausa para que haja silêncio ou alternância na conversa), trata-se de uma ruptura do círculo, da unidade, da detenção da pulsão falante. Paradoxalmente, onde toda beleza e potência do seu pensamento, a interrupção seria uma exigência que haveria que responder falando. Em outras palavras, falar sem poder falar, falar na medida do desconhecido (isto é, falar-com; onde – com expressa uma distância irredutível ao Eu unificador), falar segundo a dimensão da linguagem em sua infinidade. Por isso Blanchot afirma que escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu. No capítulo Da possibilidade de deixar a escrita, Tiago, com humor e ironia (pero sin perder la ternura jamás), e sempre num movimento tensionado, condenado, nesse caso, na expressão poeta-palavra-distúrbio, faz uma última tentativa, porque é o último capítulo, de demolir o eu. E ele faz isso delegando uma inusitada autonomia à palavra. Assim escutamos suas vozes poéticas dizerem: a assinatura de um texto deve ser o próprio texto (não o nome do autor); um poeta avisar que antes de o conhecer devemos primeiro conhecer suas palavras; um poema que se apresenta a um concurso de poemas; um livro entrevistado (que não diz nada, claro); e uma arquitetada impotência ao poeta: escritor que não escrever; escritor que escreve sem saber escrever e escritor que aprende a não saber escrever.

Na única entrevista que Clarice concedeu à televisão, que sei o Tiago gosta muito, o jornalista Júlio Lerner lhe pergunta qual seria a função do escritor, e ela responde: escrever o menos possível. Por que diabos então não parar de escrever de uma vez? Alguém poderia perguntar. E Clarice responde, porque é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável. Eis o paradoxo, o impossível no qual o escritor, a escritora se vê envolvida: por um lado não se pode escrever, por outro, não se pode não escrever. Escrever é então colocar em jogo essa tensão, é estender um solo de experimentação. E a experiência, como diz Blanchot é aquilo que foge a qualquer conformação de poder, de apreensão e domínio; na experiência experimentamos o que escapa ao nosso poder de experimentar, sendo a experimentação do que não podemos escapar. A experiência, poderíamos então dizer, nos importa não como nossa, mas como experiência que nos anima, que nos faz testemunhar o que não somos nós.

Voltando então à pergunta inicial: como escrever quando as palavras, o pensamento, o silêncio, as mãos estão cansadas? O que escrever com as palavras, o pensamento, o silêncio e as mãos cansadas? A resposta que leio-com Tiago é: escrever justamente esse corpo cansaço, esse cansaço incansável, essa fragilidade que é a forma como acolhemos o mundo. Porque não há descanso possível. Nem o mais vulgar, como o sono, o ócio (entendido como pauta entre o trabalho), ou mais sofisticado como a contemplação ou celebrações pentecostais; já que ser afetado, padecer (estar exposto ao fora) é a condição do corpo; ele não cessa de fazer encontros com outros corpos, com a luz, com o vento, com os alimentos, com a palavra; o corpo como disse Nietzsche, é originariamente o sofrimento da impressão e o reconhecimento de uma potência estrangeira. A vida mesma é irritação ou excitação, quer dizer, não originalmente ativa, mas passiva. Logo, a questão do cansaço é afirmar a força da sua fraqueza: suportar o insuportável, viver o invívivel, estar à experiência, como propõe nosso autor, produzir um pathos ativo, estar à altura do que nos acontece, das feridas dos encontros, estar à altura da própria vulnerabilidade tornando-nos corpos larvares: resistentes mas abertos ao mundo; passivos mas ativadores de afetos alegres; tornando-nos, enfim, capazes de um cansaço de felicidade, próprio de uma criança sem nome…

*

Carla Carbatti. Doutora em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Participa das antologias Liberoamericanas: 140 poetas contemporáneas (Editorial Liberoamerica), Contemporâneas: antologia poética (Vida Secreta publicações),
Escriptonita: pop/esia, mitologia-remix & super-heróis de gibi (editora Patuá), entre outras. Possui textos poéticos, ensaísticos e resenhas publicadas em várias revistas. Autora do poemário ‘Na cadência do caos’ (Urutau, 2016).

Carla Carbatti

“Žižek Vai ao Ginásio” foi em editado em 2019 na Galiza pela Através Editora e reeditado no Brasil em 2020 pela Macondo Editora.

Artigo publicado orginalmente na Revista Palavra Comum.

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