Doutor, antes de medir a minha exaltada pulsão pela vida, deixe-me primeiro mostrar-lhe quanto tempo demorei hoje a chegar aqui. Eu sei que é um assunto com escasso teor científico, e por isso não vou contar-lhe os minutos que perdi a procurar um lugar para estacionar, nem a procurar um corpo que me desse trabalho. Não, vou falar-lhe sobre uma porta, espere, uma porta que aparece insistentemente no meu caminho e sobre a qual pergunto: abrirá para dentro ou para fora? Não, doutor, não é propriamente uma aporia que tem de ser sujeita a uma exaustiva análise por um grupo de especialistas sem nome; a maioria das vezes penso até se o meu pensamento, essa porta, não levará anos trancada. Percebe o que quero dizer? É despertar todos os dias para tentar a vontade e logo a seguir levar com uma avalanche de informação e ficar, sabe, sem saber rigorosamente nada, de nada, percebe? É sair à rua e o meu vizinho do terceiro esquerdo avisar-me: hoje chove! E o céu tão diáfano, doutor… Espere, não ficamos por aqui, já que um velho amigo, cuja democracia leva inclinada sobre os joelhos, vem na minha direção para informar-me sobre o preço da gasolina. Mais 10 cêntimos, doutor? E eu, cansado de tanta luz nos olhos, chego aqui à sua mesa a pensar no que terei afinal perdido: um anel no dedo de alguém? Um rebocador de braços como prenda de aniversário? O brando rumor do mundo?… Sabe, esta velocidade do mundo a que me custa habituar embala-me numa falsa sensação de liberdade, numa troca de experiências tão supérflua como passageira, tão tosca como auspiciosa. E essa caduca ilusão dos homens, doutor, desaloja-me constantemente das minhas certezas quotidianas: números, gráficos, acordos, decretos, uma nova lei, compre! grátis! poupe! compre?…
Doutor, veneramos a humanidade para abominar afinal o homem?
Desculpe-me o abuso, mas trazemos há milénios a humanidade enfiada nas nossas cabeças e esta dura realidade onde tropeçamos parece continuar em obras. E tudo isto, doutor, não tem nada a ver com o sonho, o sonho são duas partes da vida e a vida não tem partes senão lugares, formas, rostos. Do sonho e de certos estados de vigília, doutor, pode-se despertar, da vida não. Quando, por exemplo, durmo e sonho, tudo acontece sem o meu controlo, tudo acontece livremente, sem tempo sequer para me questionar o que quer que seja. Confronto-me apenas com a sucessão de eventos, passo a ser. Quanto à vida, a pergunta é sempre a mesma: abrirá para dentro ou para fora? “No entanto, doutor, devo reconhecer que todas as manhãs tento resistir. Esfrego os olhos, viro a cabeça para a direita e depois para a esquerda, tento confirmar novamente os números da sorte: 8-17-32-39 e o 45 outra vez? Hoje chove! No fundo, doutor, é como ser chicoteado pela realidade e, em seguida, ser arremessado para trás e para a frente, como um barco à deriva que navega sem timoneiro. Quantos atalhos foram tentados para chegar ao futuro, doutor?
Amar todas as noites um irresistível bot no Instagram e continuar a ser eternamente um candidato a nada nesta empresa chamada democracia. Conhece esta empresa, não conhece, doutor? Verá que não possuo a capacidade de reação de outrora, mas continuo a olhar com sobressalto para os cantoneiros à hora da fome, os mecânicos de automóveis futuristas a lamberem a língua ao comprido. Espere, doutor, não revele já quanto tempo demora a noite a fazer efeito. Aproxime-se, por favor, de mim, não tenha medo de ser contagiado por esta minha tendência a não condescender com a realidade que diariamente nos é imposta. Esqueça esse esconso protocolo. Espere, coloque-me a mão no pulso, meça a capacidade bélica da minha mansa revolta. Solicite-me uma informação, como aquele desconhecido que se pressagia, que pergunta pela farmácia de serviço, que sussurra ao ouvido: não deve ser à toa que nascemos a gritar.
Texto publicado originalmente na edição número 24 da revista Sem Equivocos.