E
ra uma manhã de segunda-feira. Ele estava sentado no seu quarto do acanhado terceiro andar partilhado por mais cinco pessoas, três delas eram uma família. Estava a olhar pela janela e a pensar no murmúrio da avenida. Quantos mais haveria como ele? No Centro de Emprego, o seu estado de vida era claro: desempregado. E o senhorio, entretanto, já o tinha avisado por mais de uma vez: pague o que deve. Acabara de enviar mais um currículo, dos muitos que havia enviado nos últimos meses, para trabalhos que podiam ser considerados como uma nova forma de escravatura. Tinha quarenta e oito anos, uma licenciatura com nota de final de mérito, dois mestrados, vinte anos de experiência, um rol interminável de cursos de formação e o silêncio. Levava vários meses sem uma resposta. Recebera uma vez uma mensagem automática, mas apenas para o informar que valorizavam muito o capital humano e que, após analisarem o seu currículo, concluíram, infelizmente, que não possuía as características necessárias para o posto em questão. Agradeciam desde já o seu interesse e informavam que o seu perfil ficaria na base de dados da empresa para futuras ofertas.
Quantos mais haveria como ele? Desempregado
Olhou novamente pela janela. E, num ato instintivo, vestiu-se apressadamente. Molhou uma bolacha no copo de leite frio, apanhou um comboio, depois o autocarro 14 para o terminal e o 12 para chegar ao centro da cidade. Dali, atravessou a pé, de uma ponta a outra, o centro da cidade, chegando finalmente ao balcão da secretaria da sua antiga universidade. Estava agora diante da senhora responsável, a mesma há vinte anos, olhou-a nos olhos e informou: quero deslicenciarme. A senhora olhou-o muito alta no espanto: Quer o quê? E ele passou então a explicar: obviamente que iniciaria por onde acabou, o último ano, e faria todo o caminho inverso. Depois, insistia ele, ano após ano eliminaria cadeiras, professores, tutorias, estágios, propinas, exames, monografias, competição entre colegas, dores de corpo e cabeça, chegando assim, claro está, ao último degrau da desistência. Assim, quando chegasse ao final, insistia ele perante o olhar conspícuo da senhora, e respeitando a ordem oficial do curso, teria de passar um último exame cuja finalidade seria testar a ignorância pelas coisas. A absoluta ignorância pelas coisas. Evidentemente não faltariam pessoas altamente qualificadas para avaliar com precisão as suas capacidades. E, caso cumprisse com a exigência do curso, teria todo o gosto em ir à cerimónia de deslicenciatura para, assim, receber o seu respetivo diploma. A senhora, após ouvi-lo com atenção, levantou o cenho com extrema delicadeza e retorquiu: E como vai, todavia, arranjar um emprego?
Conto publicado originalmente na 23ª edição da revista em papel “Sem Equívocos”.